Itamar Vieira Junior faz primeira leitura pública de novo romance na FliConquista
No livro Coração Sem Medo, o autor celebra a cultura e a herança da comunidade surda.

A 3ª Feira Literária de Vitória da Conquista (FliConquista) foi palco de um momento histórico. O escritor soteropolitano Itamar Vieira Junior, autor de Torto Arado e Salvar o Fogo, fez pela primeira vez uma leitura pública de um trecho de seu próximo romance, Coração Sem Medo, que será lançado em 13 de outubro pela editora Todavia.
Na Concha Acústica, lotada de estudantes e amantes da literatura, o autor apresentou passagens que já revelam sua marca registrada: cadência lírica, crítica social e riqueza cultural. Trechos como “Rita Preta desliza, serena, num ilê axé… o corpo se acende. Não é o ouro, nem os edifícios, nossa herança continua a ser carregada no Orí e no Ocan” e “Santa Rita Pescadeira é Tempo e lança a rede sobre a outra Rita. É minha, a encantada vibra ao redor de Rita Preta” emocionaram o público e reforçaram a importância da leitura como ato coletivo.
Após a leitura, aplausos e reconhecimento marcaram o encontro, que destacou a FliConquista como espaço de descobertas literárias e diálogo entre escritores e leitores. O escritor comemorou o momento: “É a primeira leitura que eu faço pública, tá? Em Conquista!”.
Confira na íntegra o texto lido por Itamar Vieira Junior:
“Rita Preta desliza, serena, num ilê axé. Não sente nenhum anseio, desejo, medo. É um sopro livre, a corrente leve de ar, levantando bandeirolas coloridas, alinhadas às ripas de madeira que seguram o telhado do barracão. Faz muito tempo que não participa de uma cerimônia de axé. Esteve presente apenas duas vezes depois de seu primeiro filho nascer.
Não se recordava mais da sensação de estar numa celebração, nem dos sons dos atabaques, dos cantos, do branco das vestimentas em contraste com o negro da pele de sua gente. As janelas de madeira pintadas de azul estão abertas e uma luz especial toca o ambiente. Não é a luz de um dia ensolarado, mas um clarão difuso, afável, que ilumina a atmosfera e se integra à aura daquela comunidade que celebra Tempo.
Louvam a memória do que resistiu e se transformou na longa travessia por mar e terra, de vida e morte pelos séculos passados e os vindouros. Eis o verdadeiro tesouro e o corpo se acende. Não é o ouro, nem são os edifícios altos, modernos e seculares, nem mesmo a vastidão da terra a nos circundar. Nossa herança continua a ser carregada no Orí e no Ocan.
Resistiu ao mar, à exploração, aos castigos, à morte. Floresceu a cada manhã na mente e no corpo, fincou raízes no coração, cresceu como uma frondosa árvore, verde e viva. Transcendeu cada corpo, tornou-se sons, palavras, conhecimentos, cantos, movimentos. Arou e semeou o chão. Retirou do profundo da terra o que nomearam riqueza, ergueu grandes e pequenas cidades, fronteiras e nações, recriou mundos e deu sentido ao que parecia não ter.
Rita evolui no salão, gira, os braços flexionados se agitam. O branco de suas vestes reflete o brilho que a envolve, e as pessoas à sua volta cantam e batem palmas, saúdam o Tempo. Os corações de ontem e de hoje se unem num só. Ela dança, ela é o Tempo. Ela é Mazé, ela é Carmelita, é Donana.
Rita é o corpo dividido em cada um de seus filhos e dos filhos de seus filhos e de todos aqueles que ainda virão. Ela é os olhos dos que a glorificam em palmas e saudações. Zara tempo.
Então outra coisa Rita toma nos braços, embora ela não a conheça. Ela se apresenta sem mover a língua. Apareceu para sua mãe quando Rita se abrigava em seu ventre. Eis porque carrega seu nome. Uma alma tão antiga, sem começo nem fim, vinda dos primórdios da existência.
Conhecia o riso e o pranto, a boa e a má sorte, o gozo e a dor. Conhecia os caminhos trilhados por todos os que vieram antes e os caminhos que serão percorridos pelos que estão por vir.
Santa Rita Pescadeira é Tempo e lança a rede de apanhar peixe sobre a outra Rita. É minha, a encantada vibra ao redor de Rita Preta, empunhando a rede pesada e sem peixe, como se estivesse carregando uma arrastão de charéu. Sua dor é minha.
Oh, camimó, és um coração puro, és um coração sem medo.”