A dona do rio
Crônica assinada por Marcos Canaã.
Por: Marcos A. F. Martins (Marcos Canaã)
Hoje, as lembranças dos tempos dourados de infância me assaltaram como um ladrão. E eu, que nem creio que é possível alguém estar alegre e triste ao mesmo tempo, me sinto exatamente assim: tristemente alegre ou alegremente triste. Sem agonia, mas, também, sem a euforia própria dos que recebem uma boa nova ou uma dádiva inesperada. Apenas um leve crepúsculo, um pequeno ponto de interseção entre o gozo e o desgosto. E não sem razão.
Ontem à noite, já me preparando para dormir, recebi a notícia da morte de Tide, a dona do rio. Passado o breve espanto inicial, fui-me deitar. Dormi, sonhei, como quase sempre, com a pequena cidade em que moramos eu e minha família por muitos anos. Acordei com esse sentimento dual, de boas recordações e banzo, como se fosse véspera e fim de feriado. No meu coração, defrontando-se, um estudante entrando de férias e um trabalhador atribulado pelo serviço e pelas contas a pagar.
Já adentramos a tarde no momento em que escrevo estas sofríveis linhas. Estou no trabalho, abarrotado de serviço neste dia quente e sob climatização do ar condicionado. Deixei a janela da minha sala entreaberta. Lá fora, o sol brilha e ressalta o volume das nuvens que caminham em solene procissão. Ele arde, e elas parecem apáticas e distraídas na sua marcha lenta, quase estática. O sol sorri e é austero; as nuvens brincam e são sombrias. Não, não é isso que acontece; acho que sou eu quem estou meio dissonante.
A dona Tide fez parte da minha infância e de muitos outros. Quem nunca foi nadar no “rio da dona Tide”? Parece que aquele pedacinho de terra canaense, de cerca de meio hectare, possuía encantos misteriosos, solenes, litúrgicos e líricos: coqueiros que lembravam praia e nos abrigavam às suas sombras; ilhotas de pedras que emergiam da correnteza e nos amparavam em aventuras dentro d’água; flores e plantas à beira do rio; peixes multiformes e multicoloridos; cantos orquestrados de pássaros; um céu de anil sem equivalente… e o melhor: a simpatia com que dona Tide nos recebia.
Minha infância se foi sem se despedir de mim. Levou consigo os rios, árvores, pássaros, borboletas, flores, amigos e as brincadeiras. Pessoas também se vão sem nos dar um simples adeus. Como disse Rubem Braga: “Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste”. São como o ônibus que, passando pela cidade, para na estação, é recebido com expectativa, mas logo se vai, levantando poeira e despejando fumaça. Hoje, sinto-me como se minha infância se tenha ido novamente sem um aceno sequer.
Nunca me esquecerei dos meus áureos dias de infância em Nova Canaã e, sobretudo, das tardes quentes de verão naquele “retiro” quase espiritual e inspirador à beira do rio da dona Tide. Sim, eu sei que o tempo partiu sem essa despedida. Mas adeuses não são necessários quando a ausência é preenchida por tão belas e agradáveis lembranças!